Mudaria a Páscoa, ou mudei eu?

Quando eu era criança -ou seja, há cerca de cinco anos- não se comemorava a Páscoa com essa ênfase toda, não, senhores e senhoras. A nossa tradição ibérica centrava todas as nossas ações e sentimentos na paixão de Cristo. A Semana Santa era antecedida de grande terror, como se disséssemos: "De novo vamos assassinar Jesus Cristo. De novo vamos fazê-lo sofrer por nossos pecados. De novo vamos subverter a ordem das coisas: Deus, reduzido à humilhante condição humana, vai padecer de novo por nós."

Sentíamos vergonha por isto. Em Barbacena, onde quase invariavelmente passávamos aquele período, a dramatização do suplício na procissão que passava bem sob a sacada do Sobrado era uma circunstância plena de pavor, culpa e arrependimento.
Lembro-me de perguntar a meu pai quem eram todas aquelas personagens, ele me respondia com grande paciência: "Aquela é a Verônica, aquele é Simão Cireneu, aquele outro é o Centurião..."
E eu: "Mas se ele é São Turião, por que é que bate tanto em Jesus?"

A Páscoa não era uma festa. Era momento de alívio: a comiseração de Deus pelos homens triunfara novamente, podíamos passar mais um ano a buscar o estado de graça, mas sabíamos que todos pecariam e fariam Jesus sofrer todo aquele abuso, toda aquela violência, todo aquele sacrilégio... A Páscoa consistia na Missa de Páscoa. Comungar de novo o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor. Depois, um tímido chocolate quente com algus biscoitos servidos pelas Irmãs. Lembro-me de um sentimento de paz, não de festa. Ovos de Páscoa eram no Brasil uma novidade tímida e recentemente importada, que muitas famílias viam com desconfiança.

Eu havia aprendido a ler muito cedo, minha "professora" fora minha irmã Rosinha, lia tudo que me caía às mãos. Amava o livro "Juca e Chico", de Wilhem Busch, na tradução de Olavo Bilac. Ali, na sexta travessura, espantava-me o clima festivo atribuído ao que para mim era tempo de trevas:

"Chegou a Semana Santa!
Há tanta encomenda, tanta..."

E o texto prosseguia descrevendo a azáfama de padeiros e confeiteiros para atender a ávida freguesia de bolos, doces, confeitos e similares. Aquilo para mim cheirava a heresia protestante! Tão novo e tão radical...

Muito mais tarde, ao visitar o Museu dos Brinquedos na Marienplatz, em München, dei de cara com a primeira edição alemã, graficamente idêntica ao meu livro. Chorei de emoção, confesso, e comprei um fac simile. No hotel compreendi o que se passara: o bom Bilac, na busca da boa rima, traduzira "In der schönen Osterzeit", literalmente "na bela estação da Páscoa", por "chegou a Semana Santa", para ecoar com o "tanta".

A tradição festiva da Páscoa é coisa nórdica. Nesse caso o meu atavismo acorre muito mais fortemente às minhas raízes minhotas de Braga e Ponte de Lima que às origens dos Tamm e dos Franzen, a "Freien und Hansestadt Hamburg".

De qualquer maneira não me recuso a desejar a todos uma Feliz Páscoa. Com direito a bacalhau.

PASCAL 70 IV, fórum, 28/03/2005.
 

volta